Lá, a mão-de-obra infantil é explorada sem qualquer disfarce, numa
naturalidade assustadora. São centenas de meninos e meninas cada vez menores,
cada vez mais novos.
Três primos e o mesmo sacrifício: empurrar o carrinho cheio de compras em
troca de uma moeda pra cada um. A recompensa é pequena. Leonardo, o mais velho,
de 7 anos, trabalha descalço.
Os meninos mais novos, mais franzinos não conseguem empurrar o carrinho de
mão comum, mas nem por isso estão livres do trabalho precoce. Eles usam um
carrinho menor.
Mesmo assim, José Victor, de 8 anos, tem dificuldade para manobrar a
principal ferramenta de trabalho. Ele apoia o carrinho nos ombros pra dar
conta.
Muitos meninos carregam e esperam para levar as mercadorias. O trabalho nas
feiras livres é o que envolve maior número de crianças e adolescentes em
Pernambuco. Lá, entre barracas de lona, a infância é tratada como uma
mercadoria sem valor.
Um pesadelo que ignora a infância por completo. Duas meninas, que são
primas, descascam o feijão de corda com uma agilidade impressionante – sinal de
que estão acostumadas com a tarefa. Com apenas 10 e 12 anos de idade, já são
veteranas no trabalho na feira.
Globo Repórter: Desde quando você trabalha?
Menina: Desde os 6 anos de idade.
Globo Repórter: Quem te levou pra trabalhar?
Menina: Minha mãe.
As meninas têm responsabilidade de gente grande. As duas tomavam conta da
barraca de uma tia quando chegamos.
Globo Repórter: quanto é que ela dá pra você, a sua tia?
Menina: R$ 10.
Globo Repórter: você acha que criança devia trabalhar?
Menina: não.
Globo Repórter: o que você acha que as crianças deveriam estar fazendo em vez
de trabalhar?
Menina: Estudar.
As crianças são de poucas palavras e sorrisos encabulados. Não gostam de
falar da rotina cansativa que aceitam de forma resignada.
Uma pequena feirante tem 9 anos e já entende do ofício.
Globo Repórter: O que você faz na banca?
Menina: Vendo verdura.
Rosemeire Mendes, feirante: Ela vem porque quer mesmo, não é obrigada a vim,
não.
Globo Repórter: Ela ganha alguma coisa?
Rosemeire Mendes: R$ 10.
Os primos de 9 anos e 12 anos trabalham juntos e compartilham o carrinho.
Quando um cansa, o outro entra em ação.
Menino: Cada qual leva um pouquinho.
Globo Repórter: Vocês são sócios, é?
Menino: Quase isso.
Os parceiros na maratona se revezam nas idas e vindas com as mercadorias
para dividir R$ 20 no fim da feira. E pensar que o carrinho foi um presente
festejado.
Se no passado a maioria das crianças trabalhava pra ter o que comer, pra
sobreviver, hoje não é só a pobreza que empurra meninos e meninas para a
jornada do trabalho precoce. Existe um apelo cada vez mais forte entre os
pequenos trabalhadores: o desejo de consumir.
Aos 14 anos, ele trabalha como açougueiro na barraca de carnes da avó. Lida
com instrumentos de corte – faca, serra. Convive com o perigo em nome de um
sonho grande pra quem leva uma vida modesta.
Globo Repórter: Você quer comprar o que?
Jovem: Uma moto.
Globo Repórter: Não é difícil usar a faca amolada pra cortar a carne? Você já
se machucou alguma vez?
Jovem: Já, de vez em quando.
Globo Repórter: Você não tem medo de trabalhar aí no açougue?
Jovem: Não.
Os meninos da feira não desistiram do direito de sonhar. E querem ter acesso
aos bens de consumo cobiçados pela maioria das crianças.
Globo Repórter: O que você quer comprar com o dinheiro aqui da feira?
Menino: Até agora, um vídeo game.
Enquanto se esforçam pra comprar um vídeo game, os meninos gastam alguns
trocados pra se divertir nas lan houses. É quando eles trocam o carrinho
de mão pelo computador e voltam a ser crianças.
Mais da metade das crianças que trabalha na feira de Garanhuns apresenta
defasagem escolar. Alguns abandonam a escola.
Em apenas um dia, os fiscais do Ministério do Trabalho encontraram 114
crianças na feira. E 53% delas estão atrasadas na escola. Alguns com até três
anos de defasagem.
Globo Repórter: Por que é tão difícil combater este tipo de trabalho?
Simone Brasil, do Ministério do Trabalho – PE: Porque a sociedade tolera e até
incentiva que as crianças trabalhem. É sempre aquele discurso: ‘não há
alternativa pros filhos das classes menos favorecidas que não seja o trabalho’.
O trabalho na infância foi uma herança de família para Maria Eunice,
feirante de 45 anos. Ela começou a trabalhar aos 9 anos. Maria Eunice leva dois
filhos pra ajudar na barraca. A feira acontece no sábado, quando Jaqueline e
Clayton não têm aula.
“Eu quero o que eu não tive. Quero que eles estudem, não tiro eles da escola
por nada deste mundo”, afirma Maria Eunice Berto, feirante.
A feira termina, mas o trabalho continua. A família que saiu do sitio às
2h30 desmonta a barraca, recolhe o que sobrou e começa a viagem de volta. É de
caminhão que os feirantes pegam a estrada.
Quase 15 horas depois de terem saído do sítio, a Eunice, a Jaqueline e o
Clayton estão de volta. Foi uma longa e exaustiva jornada.
Seu Juarez já esperava na porteira com a filha caçula. Os sete filhos são o
maior patrimônio da família. As crianças estão na escola. Um orgulho para os
pais que vivem da roça.
Globo Repórter: O senhor acha que o trabalho duro, na enxada, vai ficar só
para a geração de vocês? Seus filhos não devem repetir esse destino?
Juarez dos Santos Filho, agricultor: Para eles eu não quero não. De jeito
nenhum.
Clayton e Jaqueline sabem que os pais trabalham duro para que eles possam
estudar, e retribuem se dedicando aos livros.
Globo Repórter: E do futuro, o que você espera?
Clayton: Estudar, crescer e ser alguém na vida.
Globo Repórter: O que é ser alguém na vida pra você?
Clayton: Trabalhar.
Globo Repórter: Em que profissão?
Clayton: Veterinário”.